terça-feira, 10 de novembro de 2009

Ivan Illich




"É na liberdade universal de palavra, de reunião e de informação que consiste a virtude educativa"


Ivan Illich nasceu em Viena no ano de 1926 e faleceu em Bremen, na Alemanha em Dezembro de 2002. Filho de pai jugoslavo e mãe com ascendência judia, teve de abandonar a Áustria quando tinha cinco anos. A família mudou-se para Roma, onde Illich completou os seus estudos: física (Florença), filosofia e teologia (Roma) e doutoramento em História (Salzburgo). Durante a infância e juventude conviveu com o círculo de nobres russos que se refugiaram na capital italiana depois de terem saído do seu país aquando da revolução comunista de 1917. Foi também em Roma que Illich entrou para o seminário (1951), onde teve como colegas muitos dos futuros diplomatas do Vaticano e onde se ordenou sacerdote. O Cardeal Spellman, arcebispo de Nova Iorque, convidou-o para seu auxiliar. Por ser fluente em dez línguas, Illich tornou-se intérprete do Cardeal e teve como função preparar sacerdotes e religiosas para a comunidade hispano-americana. Nos anos 60 mudou-se para o México onde criou o Centro Intercultural de Formação (CIF), com o objectivo de sensibilizar missionários para trabalhar na América Latina. Na década de 70 foi co-fundador do Centro de Informação e Documentação (CIDOC), espécie de universidade aberta, especialmente voltada para os problemas da educação e independência cultural do Terceiro Mundo, sobretudo da América Latina.

A partir de 1980, dividiu o seu tempo entre o México, os Estados Unidos e a Alemanha. Nos últimos anos de sua vida, Illich foi professor convidado de filosofia, de ciência, tecnologia e sociedade no estado da Pensilvânia, sendo também docente na Universidade de Bremen onde morreu no dia 2 de Dezembro de 2002.

Segundo Illich, o actual sistema educativo converteu-se num sistema burocrático, hierarquizado e manipulador, tendo como função primordial a reprodução e o controlo das relações económicas. Por toda a parte, o aluno é levado a acreditar que só um aumento de produção é capaz de conduzir a uma vida melhor. Deste modo se instala o hábito do consumo dos bens e dos serviços, que nega a expressão individual, que aliena, que leva a reconhecer as classes e as hierarquias impostas pelas instituições(Illich, 1974, pp.9). Os alunos estão sujeitos a currículos extensos e repetitivos, dados de forma demasiado rápida e superficial. Os professores, já habituados a esta rotina, não dão a possibilidade de aprofundar um ou outro tema que mais interesse os alunos, nem são capazes de atender às necessidades específicas de cada aluno. A escola passa assim a ser um local de desigualdades e de conflitos, uma vez que alguns se adaptarão melhor do que outros.

Janela das oportunidades

Um aluno universitário tem uma massa encefálica que pesa cerca de um quilo e quinhentos gramas. Essa substância abriga cem bilhões de celulas nervosas e cada uma delas se liga a milhares de outras em mais de cem trilhões de conexões. É chamada sinapse a relação de contato entre essas células nervosas e é justamente graças a essa trama que nos dá a oportunidade de pensar, recordar, raciocinar e emocionar.
Os neurobiólogos têm denominado esta situação como sendo a criação de "JANELAS DE OPORTUNIDADES" , ou seja, cada experiência vivida em cada período de desenvolvimento da criança realiza conexões entre as células nervosas que cria as condições favoráveis para o surgimento de determinadas capacidades observadas nos adultos.
Assim, Musicalidade, raciocínio lógico-matemático, inteligência espacial, são capacidades que se consolidam na primeira infância, quando a criança está aprendendo a aprender. Em relação ao domínio de linguagem, estas "janelas de oportunidades" se abrem ao nascer e vão até os 10 anos, sendo que após esta idade a dificuldade para se adquirir um novo idioma é a mesma de um adulto, como afirma Patrícia Kuhl da Universidade de Washington.

Em um recém nascido, os dois hemisférios do cérebro ainda não se especializaram. Isso irá acontecer lentamente até os 5 anos, e muito mais rápido até os 16, sabendo que de maneiras desiguais para cada hemisfério e para cada inteligência.

A idéia da janela é positiva, pois, se ela está "escancarada", temos um grande momento para seu estímulo, se está parcialmente "fechada", o estímulo é válido, mas a aprendizagem será um pouco mais difícil.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009


Edgar Allan Poe


Edgar Allan Poe (1809 - 1849) foi um escritor, romancista, poeta, crítico literário e editor americano. No meu ponto de vista foi uma fonte de inspiração para o criador dos filmes mais psicodélicos jamais vistos, ninguém mais, ninguém menos que Tim Burton. Tim demonstra esse afeto e justa identificação por Poe que faz uma curta metragem onde cita o poema "O corvo" de Poe (curta metragem á disposição, é só clicar em videos ali em 'marcadores', e o poema aparece escrito original em inglês, abaixo do filme - logo postarei a tradução). E se começarmos a indagar sobre tudo o que ocorre por trás do que os olhos vêm, chegaremos á maldita ligação que Tim tem com o ator Jhonny Deep, que aparece em quase todos os filmes de Tim Burton. Logo farei um post sobre essa referência, que após ler tantos poemas psicodélicos chegaremos a pensar que é um tipo de pacto. :O
Aqui vão alguns pensamentos de Poe.
>Não é na ciência que está a felicidade, mas na aquisição da ciência.
>Quem sonha de dia tem consciência de muitas coisas que escapam a quem sonha só de noite.
>Defino a poesia das palavras como Criação rítmica da Beleza. O seu único juiz é o Gosto.
>Tudo o que vemos ou parecemos / não passa de um sonho dentro de um sonho.
>Para se feliz até um certo ponto, temos que haver sofrido até esse mesmo ponto.
>A perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano.
>Talvez seja a própria simplicidade do assunto que nos conduz ao erro.
>A enorme multiplicação de livros em todos os ramos do conhecimento é uma das maiores pragas desta era, porque é um sério obstáculo à aquisição de qualquer conhecimento positivo.

sábado, 7 de novembro de 2009

Qualquer dia

Um dia, não tão distante daqui, os astros nos verão de bem, e nos deixarão por fim em paz. Não pense que desistirei, e nem pense que será fácil, mas te dou minha palavra, troco tudo pra te ver feliz. Se for ao meu lado, será uma honra, se não for, azar o meu, mas tentarei sorte.
Já sei o que me motiva pra te esperar, não sei como te contar, pois nem eu entendo. Mas há coisas em você que nunca percebi em ninguém, pra você pode ser simples, normal. Pra mim não, nada do que aconteceu comigo depois de te ver foi normal.
Sinto teu jeito delicado as vezes, mesmo em tua ausência, meios que aumentam ainda mais o meu fascínio por você. Cada pensamento por você já é bom, quando te vejo é ainda melhor.
Quando te tenho é inexplicável, faz meu sorriso.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O Vampiro da Alameda Casabranca - Márcia Denser

A não ser pelo filme japonês em cartaz, não havia nenhum interessem sair com aquele sujeito, poeta, que se ostentava como "maldito" só para poder filar seu canapezinho de caviar nas altas rodas. Um guru de fachada, meio sobre o charlatão cósmico, adepto que era de uma esotérica seita oriental, babaca como tantas outras, e usando tudo isso em proveito próprio. Pelo menos não era burro. Disso resultavam as sessões de massagem transcendental nas madames com hora marcada, ou mesmo sem ela, ao sabor das prisões de ventre, dores de corno e outras piorréias. Não era mesmo burro. Feioso, devia viver faminto de carne fresca mas, passando-se por espiritual, ia tirando suas casquinhas. A conversa era inconsistente, cheia de expressões pedantes e, até pela sintaxe, tão emaranhada em meandros que obviamente não levavam a parte alguma, notava-se a eterna fome do cara. Uma espécie de vaga ansiedade piedosa de algo que rodeia e rodeia aquilo que seria um alvo não tivesse ele em mira outra coisa. Por exemplo: enquanto sua boca passeava pela evolução da energia cósmica, seus olhos hipnotizavam-se (bem como toda a sua alma) num ponto qualquer entre meus seios, e a energia cósmica ia e vinha, subia e descia, jamais se perdia, enrolava e se desenrolava, mas não chegava a nenhum lugar, uma vez que o verdadeiro objeto daquele papo estéril permanecia fora de alcance. A arenga também seria hipnotizante: eu me sentia como uma criança birrenta que não quer dormir ou um animal relutante em cair na armadilha.

O tal filme japonês fora realmente bom, um monumento poético, um estudo profundo sobre as paixões humanas, etc. e assim eu poderia falar sobre ele ad nauseam, mas o Poeta apenas emitiu suas impressões assim: "É barra! Que barra! É uma barra!" dizendo-as de maneiras diferentes e impostando a voz num diapasão enfático que partia da traquéia, explodindo num ruído seco e rouco, feito um peido bucal, e como se a palavra "barra" contivesse, não digo o significado de todo o universo, mas, pelo menos, de todo o filme. Isso no fim da fita. Durante esteve todo o tempo tentando pegar no meu braço. Um verdadeiro saco. Então eu me perguntava: por que sair com aquele cara? Era desses feriados tediosos, todos os amigos queridos, todos os sujeitos interessantes, todas as amigas disponíveis viajando, restando os neuróticos, os chatos e os vampiros na cidade. Já era uma boa razão. Depois, eu apenas desconfiava de tudo isso, ainda não configurara uma imagem nítida do Poeta na minha cabeça. Na hora "H" fico possuída duma puxa-saquice pânica por agradar, mais preocupada com o efeito que com o objeto propriamente dito. Posso acabar fascinando Drácula em pessoa, sem dar pela coisa. Daí me livrar do monstro já é outra estória.

Como nesses clássicos de horror, ao sairmos do cinema "um vento gélido açoitou-nos os ossos". Confesso que não fiquei surpreendida quando o Poeta sugeriu passarmos no seu apartamento para pegar um pulôver, coitadinho. Antes tentei aliciá-lo para uma cave de queijos e vinhos, mas ele não entrou. Também não queria ser grossa ou passar por retrô ou sei lá. No fundo, no fundo, estava querendo ver até onde ia o meu fascínio — e eu sei onde vai o meu fascínio — com o Poeta. Sabe-se lá.

No apartamento (não fosse pelo excesso de cartazes politicosos, até que bem jeitoso. Um tanto "artístico-displicente" demais, eu acho, como tantos outros onde eu estivera, de poetinhas, atores de teatro, bichas. São todos iguais. Deve ser a fada madrinha) eu aproveitei meu fascínio ao máximo. Munida dos meus trabalhos, submeti o Poeta a uma intermitente sessão de leitura dos melhores trechos por umas duas horas. Minhas estórias são boas, mas lidas assim, no tapete, bebendo um bom vinho tinto, um fogo aqui dentro, ar condicionado, almofadas e mantas peruanas, música suave e um sujeito querendo me comer ali do lado, não há talento que resista. Então, ele me submeteu a mais duas horas de suas poesias, aliás inéditas. Se fossem boas até que valeria o esforço, o fascínio, a atenção fingida (tinha ganas de estourar de rir cada vez que ele pigarreava, afivelando um ar circunspeto, como se preparando para ler um discurso, um obituário, um testamento, enfim, algo muitíssimo sério), o vinho, aquele apartamento, o filme japonês, os feriados, aquelas profundas crateras que lhe sulcavam o rosto, o ligeiro cheirinho oleoso e adocicado que se desprendia delas, a mania de falar de si próprio na terceira pessoa, como se fosse um fantasma, o fato de ser careca de um lado só, daí o cabelo restante se amontoar num topete atrás da orelha esquerda, enfim, mas não eram. Não eram mesmo. Ocas, delírios vagos, desconexos, de um concretismo de cabeça dura e reticências. Na mesma construção e com a mesma ênfase conviviam vísceras e sangue, cosmos e eternidade, como se essas palavras não significassem nada além de meros sons poéticos convencionais. Quando a coisa começava a esquentar, ele sempre botava as tais palavras definitivas como Deus, Espaço, Eternidade, Morte, e esquecia as preposições, tornando tudo assim delirantemente obscuro, como se possuísse uma chave, um código para sua decifração. Para os leigos, as garotas bonitas e os novos-ricos, quanto menos se entende mais a coisa deve ser boa. Palavras bonitas é igual a idéias bonitas. É gongórico, é elementar. O Poeta conhecia muito bem esse princípio e aplicava-o até à exaustão. A minha, por exemplo. Na verdade, algumas eram até sofríveis, mas parece que o sujeito tinha um cadeado no cérebro. Estava prisioneiro. Não se enfrentava. E se começava a botar a mão na merda, lá vinha ele com seus deuses e demônios anti-sépticos, para levar todos os pecados. Pelo menos os dele. Se achava que os tinha. Ser feio, por exemplo, era um. Equilibrava-se definindo-se "pedante e sofisticado". Supunha-se, dessa forma, inacessível. Enganava só os trouxas.

Na conversa, Poeta mencionou uma festa. Amigos intelectuais, etc. Então vamos, me animei, e fui emergindo das almofadas, procurando as botas debaixo do sofá, espantando cobertores, relanceando um olhar melancólico para as garrafas vazias, mas ele me reteve. Ainda não, disse, fixando-me um olhar tigrino cor de petróleo. Era como um aquário, a exposição, atrás do vidro córneo, do que havia no interior de suas espinhas mortas: óleo diesel.

O pequeno deus Caracol, o deus dos covardes, deve habitar em mim, pois foi ele que me fez encolher, puxando consigo todas as terminais nervosas, todas as sensações de prazer e dor, toda alegria, todo pranto, e me transformar num penhasco árido, num terreno baldio entregue às varejeiras, aos cacos de vidro, lixo, mato ralo, aos cães vira-latas, e aos teus beijos, Poeta.

Uma zoeira distante no ouvido, uma sensação incômoda nas costelas, a boca seca avisaram-me que bastava. Fui me desprendendo aos poucos. Tarefa, aliás, bastante embaraçosa. Eu diria hilariante, se não fosse parte ativa. Parecíamos atores de um filme do Harold Lloyd. Eu puxando de cá, ele de lá. Um escorregão providencial da minha parte (estávamos em pé) decidiu a contenda. Fomos à festa.

A primeira coisa que chamou minha atenção foi que o dono da casa — por sinal, um belíssimo rapaz — usava, atadas na manga da camisa, duas fitas de seda nas cores da bandeira nacional. Assim como os rapazes da TFP, a juventude de Hitler, os pupilos de Mussolini. Como um ungido, a marca da distinção, do bem-nascido, bem-dotado, bem rico, a nata, a perfeição e vocês fora! E viva Nietzsche e o quarto Reich, logo, o General Pinochet, Idi Amin, Pol Pot, Gengis Khan e a Revolução de 64. Puxei-o pela manga: o que é isso? Sorriu com seus olhos azuis de água doce: Não é um belo país? É. Olhei a mesa: vinhos franceses, queijos suíços, baixela húngara, guarnições de renda austríaca, charutos cubanos, vodca russa, cigarros americanos. Belíssimo país. Belo mesmo é você, pensei cinicamente, cobiçando a belezinha de jovem fascista e seus brinquedinhos, entre eles uma linda esposa loura e psicóloga formada pelo período da tarde do Cursinho Objetivo, altura e peso ideais segundo a revista Cláudia e preocupadíssima com seus encargos de anfitriã (repetiu neuroticamente a noite toda que "a previsão falhou" a propósito de haver terminado o queijo de nozes antes das duas da matina). E os intelectuais? Da "festa" constavam exatamente dez pessoas. Além dos anfitriões, eu e o Poeta/Profeta, havia um outro casal composto de um sujeito enorme, estilo CroMagnon, filho de general, com o curioso nome de Ciro, faixa preta em caratê e que me foi apresentado como um pintor maravilhoso, porém desiludido (o pessoal devia ser positivamente cego) e cocainômano ativo, acompanhado por uma garota misto de Dama das Camélias e Madrasta da Branca de Neve: profundas olheiras azuladas, cabelos crespos e negros acentuando oleosamente o rosto pálido, ossudo, lunar, quase transparente, usando uma camisa branca também transparente (seios nada transparentes) sem sutiã e, a chamar a atenção de todos para os seus pés feridos pelas sapatilha de bailarina? Não sei. A cidade está cheia desses cursinhos de balé e bordado, freqüentados por jovens em idade de casar e manter a forma. Para compensar as festinhas movidas a vinho, coca e mau humor de suas excelências, seus namorados, pelos quais elas são capazes de se foder por toda eternidade, em troca de um sobrenome enganchado no rabo e um apartamento nos Jardins: os homens têm as angústias, as mulheres, os interesses, e por aí vai. Roger, o intelectual oficial, amigo do Poeta de proveta, um sujeitinho magricela, insignificante, (essa palavra é enorme!), apagado na minha memória, acompanhava uma cooperante do governo americano junto ao Brasil, uma garota da Califórnia com cara de porto-riquenha. Ela deveria detestar aquela cara tropical, a pele morena, cabelos negros cortados rente, como se pagando uma pena, os olhos escuros feito morcegos assustados, encolhidos no fundo da fisionomia. Que fazer se sua mãe havia pulado o muro do México? Roger, o colonizado, desmanchava-se em atenções para com o produto de Tio Sam, mas eu imagino que, para ele, bastaria qualquer coisa, uma lata de sopa Campbell, digamos. Que representasse a civilização, a cultura superior, etc. Razões inconfessáveis. Não via nela apenas uma garota assustada num país estranho. Assim como eu não enxergava o aspecto repugnante do meu guru-poeta. Tampava o nariz, os olhos, a boca, e o engolia em nome de uma vaidade idiota. Presentes também um par de primos dentuços e noivos que se despediram cedo. Eu aposto que pra ver televisão e se agarrar no sofá.

A madrugada evoluiu naquele apartamento neoclássico, com ativa movimentação de garrafas de vinho, rodadas de coca, camembert rançoso e conversas idiotas. Já estava amanhecendo e restavam os donos da casa, Ciro, Branca de Neve, Poeta e eu, já me sentindo completamente onipotente. Sentimento provavelmente compartilhado por todos, uma vez que a conversa girava sobre vida extraterrena, enquanto Brinquedinho raspava com uma pazinha de sorvete os restos de pó grudados no bumbum da garota na capa da revista Playboy. Excelente anfitriã. Belo Fascista inquiria o Poeta:

—Você, Klaus, que é um cara ligado nessas coisas, e entende paca, já deve ter tido revelações, não?

— Bem — começou o outro — pode-se dizer que nós (falava sempre no plural, aludindo estranhamente uma cumplicidade invisível. Quem sabe com os deuses.) chegamos a fazer vários contatos realmente inexplicáveis, eu diria, por exemplo, quando morreu a Dorinha...

— A Dorinha não morreu trovejou Ciro, olhos vidrados numa faca de cortar frios.

— Talvez sim, talvez não condescendeu misteriosamente Klaus — muitos de nós já chegaram a...

— Besteiras, não há nada — cortei. Estive lá em cima e vi: estão todos mortos. E voltando-me para o meu anfitrião: Um trechinho de seu autor predileto, beleza...

— Como? — Belo Fascista arregalava os doces olhos azuis.

— Ela divaga — Poeta endereçou-me um olhar enviesado — mas como eu dizia, a Dorinha...

— Agora que estou vendo — interrompi novamente. De repente, Ciro e Branca de Neve me pareceram estranhíssimos: ele enorme, truculento, ela frágil, meio amalucada...

— Vocês não têm nada a ver, não é? Sorria para ambos como abençoando-os. Klaus, desorientado, arreganhava os dentes, desculpando sua convidada.

— Terrível, terrível, arfava Branca de Neve.

— Pensando bem, acho que a garota tem razão, Ciro não tirava os olhos da faca,

—E como é que vocês tre. . . Um violento cutucão do Guru, debaixo da mesa, fez-me engolir o resto da frase.

Depois disso, fui mergulhando cada vez mais fundo num burburinho ácido e esbranquiçado. As frases se sucediam de cá para lá, e eu as acompanhava como bolinhas num jogo de ping-pong, apenas como bolinhas, que não são nada além de bolinhas brancas.

Levantei-me e fui até a janela: É isso, pensei, sufocar a ressaca, afogá-la na boca cinzenta e azeda da manhã como num cesto de roupa suja. Esse é o preço pago pela droga consumida durante a madrugada, porque a droga tem o segredo que afoga a náusea, o vômito, a acidez desse vinho escuro injetado nas veias desde a noite anterior, então, ao amanhecer, foi puxada a descarga, sentido um só tranco, o estômago a brecar e a gemer no alto de um prédio no Pacaembu e isso foi quase tudo. Quase porque eu ainda não terminara. Porque o vazio, após a descarga, é insuportável. O vaso sanitário ficar deserto e se tem medo de tornar a usá-lo e infectar o mundo inteiro. A náusea que se instala expulsa a razão, amedronta as palavras, e eu precisava falar que daquela madrugada ficou um gosto arrepanhado de sal de fruta, a efervescência cinza pérola do antiácido diante dos olhos e uma tristeza secreta e corrompida por me saber mole, dobrável, e ainda uma vez voltar a fazer coisas que não quero, não preciso, não desejo, todavia o álcool e a droga me levam lá, uma espécie de morte incluída nos serviços de buffet; a cada episódio eu morro, e eu morro, e eu morro de novo, e volto a me assassinar, porque contar essa estória é o mesmo que atacar a mesma mulher há anos, violentamente, por trás, e como se ela fosse virgem, então, o toque no ombro, o hálito amanhecido às minhas costas: Klaus. Haviam escurecido a sala. Silenciosamente, colocou-me o casaco e, na condição de irmãozinho mais velho, carregou-me para longe daqueles perigos. Seu apartamento, por exemplo.

Lembro de um café da manhã numa mesa com toalha de plástico, e um enorme queijo de Minas. Eu estava chapadíssima, achando o queijo muito engraçado e porque não podia aparecer em casa de modo algum naquele estado. Klaus, este então parecia esmagado sob o peso da recompensa. Ele tinha mesmo uma cara amassada de vilão do faroeste depois da última briga, versão piorada entre Jack Palance e John Carradine. Cara picada pelo ressentimento e pela varíola, obtinha dormir com a mocinha sem mais aquela. Era demais. Ele vai brochar, pensei.

Havia sol, mas estava frio e úmido e Poeta, muito solícito, uniu duas camas gêmeas, cobriu-as com mantas, enquanto eu me despia, obedientemente, cumprindo um ritual sem escapatória, filha de Maria, sacerdotisa de Astarté, coroinha alimentado e fodido secretamente pelo padre, eu obedecia, apenas. Fiquei de bruços, fechei os olhos, pensando: o prazer puro, o prazer puro. Não poderia ver aquele rosto agora, seria insuportável, seria inconcebível, e eu acho que ele me ficou agradecido. Mesmo assim não conseguia. Estava submerso em droga e álcool, uma chaga viva de excitação que pulsava e gemia, rilhando os dentes, pobre animal sonâmbulo imaginando-se um ser humano de carne, ossos e fezes, se esvaindo entre minhas nádegas numa tortura aplicada de movimentos ineficientes; uma vez que ele não conseguia, o animal depositava-se como um pedaço morto de carne fria junto ao meu corpo. Vamos liquidar isso, pensei. Sentia-me cansada, nauseada, azeda. A excitação esticava-se como um cordão frouxo contudo sem arrebentar. Vi pela janela a manhã alta, cor de magnésia, e disse: chega, vamos dormir. Às minhas costas, ele desabou, barraquinha de campanha, como se o tempo todo estivesse aguardando a ordem que o libertasse da prontidão. Segundos depois ressonava eloqüentemente. Adormeci pensando onde havia me metido, aquele apartamento de solteiro da Alameda Casabranca tinha algo a ver com um túmulo, gente adormecendo ao nascer do sol, falta só o punhal de prata, mas, por alguma razão maluca, não queria ir para casa e não queria ficar ali. O sono me colocou no lugar certo. Estaria sonhando com um jardineiro espanhol ou com tesouras, não sei, e acordei salgadamente sentindo algo vivo se mover, quente e alerta, entre minhas coxas. Pulei da cama, como se impulsionada por retrofoguetes: fugir, pensava, fugir, correr, vomitar, se vestir. E fui apanhando os destroços das roupas atiradas pelo quarto. Ao subir as meias, espiei com o canto do olho a cara atônita, amassada de Klaus, parecendo um pedaço carbonizado de casca de árvore na brancura de areia dos lençóis. A boca entreaberta não ousava protestar, articular nenhum som, com aquele ar de bagre estúpido, aquele ar de fóssil humano: a qualquer palavra minha, viria a réplica de bernardo-eremita na voz de fariseu sufocado e eu não queria deixar nada claro. A coisa, naquele pé, já parecia suficientemente ridícula, uma pornochanchada sinistra: ele, de pau duro debaixo das cobertas, cara de idiota, observando a mocinha se vestir num desespero vertiginoso, como se perseguida por Jack, O Estripador. Faltava vestir o casaco e me lancei para fora do quarto. Uma empregada velhíssima e cheia de varizes abriu-me a porta da rua. Desci pelas escadas. Nem cogitei estar no 15° andar. Alcançando finalmente a rua, parei ofegante. Porra, estava livre. Leve. Livre. Comecei a rir sozinha: até que fora bem gozado. Cambaleante e feliz, ri por dois quarteirões. As pessoas se voltavam, espantadas. Um perfume de pãezinhos frescos me atraiu para uma padaria cheia de colegiais e empregadinhas. Mastigando um enorme sanduíche de presunto, pedi ao vendedor a lista telefônica. Forrando página por página com lascas de pão fresco, procurei o número do Belo Fascista. Não sabia por que, mas precisava salvar a noite. Alô, uma vozinha sonada gemeu do outro lado. Reconheci Brinquedinho. Escute, princesa, falei, diga ao seu marido que preciso fazer uma substituição (era necessário ir direto ao assunto, nada de formalismos idiotas com a família e os cachorros. Tratamento de choque). O quê? A voz prosseguia estremunhando. Uma outra, de homem, metralhava abafadamente qualquer coisa. Era seca e urgente; falando aos soquinhos parecia martelar ordens. Brinquedinho explicava confusamente algo sobre a namorada de Klaus e uma substituição. Afinal, era uma objetiva formada pelo Objetivo. O que está havendo? Belo Fascista pegara o aparelho. Parecia um bocado irritado. Expliquei da melhor forma. Por fim, convidei-o para tomar café da manhã comigo, ali, na Padaria Flor de Lys, que ficava na rua... Pedi para esperar na linha enquanto ia ver. Quanto retomei o fone, apenas o ruído de discar respondeu melancolicamente ao meu apelo. Belo Fascista não tinha mesmo nenhum senso de humor. Tão bonitinho, murmurei cheia de pena. O pão terminara e enquanto esperava o troco, espiei meu rosto no espelho da balança. Borrado de rímel preto, o rouge coloria mais a face esquerda, olheiras azuladas. Igualzinha Branca de Neve. Esfregar o dedo acentuou a palidez, mas servia. Ainda não dava para espantar as crianças. Na saída, resolvi comprar outro sanduíche para ir comendo no caminho. Esquentara e eu amarrei o casaco na cintura — um casaco lindo, de veludo caramelo — e o pessoal continuou me encarando. Sempre comendo o pão, fui subindo a rua cheia de árvores verdinhas e rendilhada de sol. Lembrei de uma passagem de Faulkner no Som e a Fúria. Afinal, alcancei a Avenida Paulista suando e arrotando salame. Em frente à Casa Vogue — que não é mais a Casa Vogue — tentei pegar um táxi. Nada. Decidi ir andando. Até o Paraíso são quatro quilômetros, mas no plano. Achei razoável. Entrei no Jardim do Trianon. Um pouco de ar puro, pensei, ecologia, patos, marrecos, galinhas, desocupados. Ecologia. Comprei um saquinho de pipoca. Um garoto de seus 17 anos atirava farelo aos perus — detesto esse ar superiormente abestalhado que têm as aves em geral — e perguntei a ele se valia atirar pipoca. Lógico, disse, e enfiando a mão no meu saquinho, retirou um punhado e atirou-o aos bichos. Era um encanto de garoto, um ninfeto dos bosques, cabelos alourados de sol e piscina do clube, a camisa xadrez aberta exibia o peito liso, moreno e uma medalhinha de San Genaro. Perguntei se era italiano. Meu pai, respondeu sorrindo. Falava com simplicidade e delicadeza. Como se fosse a coisa mais natural do mundo topar num domingo com uma garota, às onze da manhã, cara toda borrada de pintura, casaco de veludo amarrado nos quadris, um pão semicomido na mão, um saco de pipoca na outra. Ele era a própria manhã: jovem, fresco, belo, puro. Me senti mal. Queria lavar o rosto, tomar um banho, convidá-lo a passear comigo no Ibirapuera, que é o maior parque que eu conheço, sei lá onde. Melhor ir andando. Ele ficou olhando eu me afastar com simpatia, assim, também sem perguntar nada. Uma névoa de cansaço descia sobre o jardim. Senti-me longe, minha casa longíssimo, o apartamento de Klaus ainda mais longe, em outro país, outro tempo. Ajeitei-me num banco de pedra limosa e dormi. Um segundo depois acordei: alguém me cutucava as costas com um objeto duro e pontudo. Outra vez, pensei. Mas era só uma vassoura e o homem devia ser o zelador do parque. Percebi vagamente que anoitecia.

— Levaram sua bolsa e seu casaco, dona, é bom dar parte na polícia, falava com uma voz monótona, anasalada, repetindo sempre sobre o roubo e a polícia.

— Pra que a vassoura?, murmurei idiotamente, ainda aturdida pelo sono. O corpo dolorido. Meu casaco e a bolsa?

— Você tá mal, hein? Deu moleza, já viu, nego passa a mão mesmo, acho bom dar parte na...

— Já vou, já vou. Como fazê-lo calar? Estiquei as pernas. Intactas ainda minha calça de veludo e a camisa de seda. Bem, foi-se, pensei. No que deu o vampirismo poético. Judas, o obscuro, estaria agora em seu lindo apezinho ouvindo Beethoven e jantando carneiro ensopado com legumes, preparado por Lady Varizes, a copeira. Aquela cara amassada, descomposta, mastigando a sobremesa, aqueles olhos duros, machucados, e o animal adormeceria tranqüilamente entre seus panfletos comunistas, fumando cigarros mentolados. Era demais. Vomitei espasmodicamente num canteiro de hortênsias. Resolvi voltar para casa. Lá pagariam o táxi. Então lembrei: estavam todos viajando. Todos os amigos, todos os sujeitos, todas as amigas, etc. Eu estava sem a bolsa, sem as chaves, com frio, fome e precisando de um banho. No táxi, suspirando, dei o endereço de Klaus.




Este conto corresponde ao Narrador Testemunha, onde quem narra está presente na história.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Narrador


O Narrador se divide em 1ª e 3ª pessoa que significam respectivamente o "aconteceu comigo" e o "aconteceu com ele".
De um modo mais complexo se subdividem em:
Narrador testemunha: o que participou da ação. (geralmente 1ª pessoa)
Narrador protagonista: é o personagem central. (1ª pessoa)
Narrador intruso: o que conversa com o leitor, ou dá a sua opinião sobre um dado assunto.
(geralmente 3ª pessoa)
Narrador parcial: é o que percebe o narrador, em certos casos defende um lado do "jogo". (3ª pessoa)
Dentre elas estão:
(Nestes casos não temos indícios se é em 1ª ou em 3ª pessoa, podendo variar)
Onisciente: é o narrador que tem ciência do assunto a ser tratado, tem conhecimento ao que se refere.
Onipresente: é o que esteve presente na ação, que participou do acontecido.
Nosso trabalho de Teoria da Literatura (Prof. Lúcia Bento), se refere em encontrar esses quatro tipos de narrador. Tentarei fazer um post sobre todos eles, mas por enquanto tenho postado somente o do narrador intruso, que é o conto O Anjo das Donzelas de Machado de Assis.
No caso do narrador testemunha temos o conto O vampiro da Alameda Casabranca de Márcia Denser, no narrador protagonista temos Solfieri de Alvares de Azevedo (Livro de contos - Noite na Taverna), e narrador parcial o conto Penélope de Dalton Trevisan.

O Anjo das Donzelas - Machado de Assis

Cuidado caro leitor, vamos entrar na alcova de uma donzela.

A esta notícia o leitor estremece e hesita. É naturalmente um homem de bons costumes, acata as famílias e preza as leis do decoro público e privado. É também provável que já tenha deparado com alguns escritos, destes que levam aos papéis públicos certas teorias e tendências que melhor fora nunca tivessem saído da cabeça de quem as concebeu e proclamou. Hesita e interroga a consciência se deve ou não continuar a ler as minhas páginas, e talvez resolva não prosseguir. Volta a folha e passa a coisa melhor.

Descanse, leitor, não verá neste episódio fantástico nada do que se não pode ver à luz pública. Eu também acato a família e respeito o decoro. Sou incapaz de cometer uma ação má, que tanto importa delinear uma cena ou aplicar uma teoria contra a qual proteste a moralidade.

Tranqüilize-se, dê-me o seu braço, e atravessemos, pé ante pé, a soleira da alcova da donzela Cecília.

Há certos nomes que só assentam em certas criaturas, e que quando ouvimos pronunciá-los como pertencentes a pessoas que não conhecemos, logo atribuímos a estas os dons físicos e morais que julgamos inseparáveis daqueles. Este é um desses nomes. Veja o leitor se a moça que ali se acha no leito, com o corpo meio inclinado, um braço nu escapando-se do alvo lençol e tendo na extremidade uma mão fina e comprida, os cabelos negros, esparsos, fazendo contraste com a brancura da fronha, os olhos meio cerrados lendo as últimas páginas de um livro, veja se aquela criatura pode ter outro nome, e se aquele nome pode estar em outra criatura.

Lê, como disse, um livro, um romance, e apesar da hora adiantada, onze e meia, ela parece estar disposta a não dormir sem saber quem casou e quem morreu.

Ao pé do leito, sobre a palhinha que forra o soalho, estende-se um pequeno tapete, cuja estampa representa duas rolas, de asas abertas, afagando-se com os biquinhos. Sobre esse tapete estão duas chinelinhas, de forma turca, forradas de seda cor-de-rosa, que o leitor jurará serem de um despojo de
fg(654,’Cendrilon’)
Cendrilon. São as chinelas de Cecília. Avalia-se já que o pé de Cecília deve ser um pé fantástico, imperceptível, impossível; e examinando bem pode-se até descobrir, entre duas pontas do lençol mal estendido, a ponta de um pé capaz de entusiasmar o meu amigo
fg(690,’Ernesto C’)
Ernesto C…, o maior admirador dos pés pequenos, depois de mim… e do leitor.

Cecília lê um romance. É o centésimo que lê depois que saiu do colégio, e não saiu há muito tempo. Tem quinze anos. Quinze anos! é a idade das primeiras palpitações, a idade dos sonhos, a idade das ilusões amorosas, a idade de
fg(209,’Julieta’)
Julieta; é a flor, é a vida, e a esperança, o céu azul, o campo verde, o lago tranqüilo, a aurora que rompe, a calhandra que canta,
fg(341,’Romeu ‘)
Romeu que desce a escada de seda, o último beijo que as brisas da manhã ouvem e levam, como um eco, ao céu.

Que lê ela? Daqui depende o presente e o futuro. Pode ser uma página da lição, pode ser uma gota de veneno. Quem sabe? Não há ali à porta um índex onde se indiquem os livros defesos e os lícitos. Tudo entra, bom ou mau, edificante ou corruptor,
fg(570,’Paulo e Virgínia‘)
Paulo e Virgínia ou
fg(691,’Fanny‘)
Fanny. Que lê ela neste momento? Não sei. Todavia deve ser interessante o enredo, vivas as paixões, porque a fisionomia traduz de minuto a minuto as impressões aflitivas ou alegres que a leitura lhe vai produzindo.

Cecília corre as páginas com verdadeira ânsia, os olhos voam de uma ponta da linha à outra; não lê; devora; faltam só duas folhas, falta uma, falta uma lauda, faltam dez linhas, cinco, uma… acabou.

Chegando ao fim do livro, fechou-o e pô-lo em cima da pequena mesa que esta ao pé da cama. Depois, mudando de posição, fitou os olhos no teto e refletiu.

Passou em revista na memória todos os sucessos contidos no livro, reproduziu episódio por episódio, cena por cena, lance por lance. Deu forma, vida, alma, aos heróis do romance, viveu com eles, conversou com eles, sentiu com eles. E enquanto ela pensava assim, o gênio que nos fecha as pálpebras à noite hesitou, à porta do quarto, se devia entrar ou esperar.

Mas, entre as muitas reflexões que fazia, entre os muitos sentimentos que a dominavam, alguns havia que não eram de agora, que já eram velhos hóspedes no espírito e no coração de Cecília.

Assim que, quando a moça acabou de reproduzir e saciar os olhos da alma na ação e nos episódios que acabara de ler, voltou-lhe o espírito naturalmente para as idéias antigas e o coração palpitou sob a ação dos antigos sentimentos.

Que sentimentos, que idéias seriam essas? Eis a singularidade do caso. De há muito tempo que as tragédias do amor a que Cecília assistia nos livros causavam-lhe uma angustiosa impressão. Cecília só conhecia o amor pelos livros. Nunca amara. Do colégio saíra para casa e de casa não saíra para mais parte alguma. O pressentimento natural e as cores sedutoras com que via pintado o amor nos livros, diziam-lhe que devia ser uma coisa divina, mas ao mesmo tempo diziam-lhe também os livros que dos mais auspiciosos amores pode-se chegar aos mais lamentáveis desastres. Não sei que terror se apoderou da moça; apoderou-se dela um terror invencível. O amor, que para as outras mulheres apresenta-se com aspecto risonho e sedutor, afigurou-se a Cecília que era um perigo e uma condenação. A cada novela que lia mais lhe cresciam os sustos, e a pobre menina chegou a determinar em seu espírito que nunca exporia o coração a tais catástrofes.

Provinha este sentimento de duas coisas: do espírito supersticioso de Cecília, e da natureza das novelas que lhe davam para ler. Se nessas obras ela visse, ao lado das más conseqüências a que os excessos podem levar, a imagem pura e suave da felicidade que o amor dá, não se teria de certo apreendido daquele modo. Mas não foi assim. Cecília aprendeu nesses livros que o amor era uma paixão invencível e funesta; que não havia para ela nem a força de vontade nem a perseverança do dever. Esta idéia calou no espírito da moça e gerou um sentimento de apreensão e de terror contra o qual ela não podia nada, antes se tornara mais impotente à medida que lia uma nova obra da mesma natureza.

Este estrago moral completava-se com a leitura da última novela. Quando Cecília levantou os olhos para o teto tinha o coração cheio de medo e os olhos traduziam o sentimento do coração. O que sobretudo a atemorizava mais era a incerteza que ela tinha de poder escapar à ação de uma simpatia funesta. Muitas das páginas que lera diziam que o destino intervinha nos movimentos do coração humano, e sem poder discernir o que teria de real ou de poético este juízo, a pobre mocinha tomou ao pé da letra o que lera e confirmou-se nos receios que nutria de muito tempo.

Tal era a situação do espírito e do coração de Cecília quando o relógio de uma igreja que ficava a dois passos da casa bateu meia-noite. O som lúgubre do sino, o silêncio da noite, a solidão em que estava, deram uma cor mais sombria às suas apreensões.

Procurou dormir para fugir às idéias sombrias que se lhe atropelavam no espírito e dar descanso ao peso e ao ardor que sentia no cérebro; mas não pôde; caiu em uma dessas insônias que fazem padecer mais em uma noite do que a febre de um dia inteiro.

De repente sentiu que se abria a porta. Olhou e viu entrar uma figura desconhecida, fantástica. Era mulher? era homem? não se distinguia. Tinha esse aspecto masculino e feminino a um tempo com que os pintores reproduzem as feições dos serafins. Vestia túnica de tecido alvo, coroava a fronte com rosas brancas e despedia dos olhos uma irradiação fantástica e impossível de descrever. Andava sem que a esteira do chão rangesse sob os passos. Cecília fitou os olhos na visão e não pôde mais desviá-los. A visão chegou-se ao leito da donzela.

— Quem és tu? perguntou Cecília sorrindo, com a alma tranqüila e os olhos vivos e alegres diante da figura desconhecida.

— Sou o anjo das donzelas, respondeu a visão com uma voz que nem era voz nem música, mas um som que se aproximava de ambas as coisas, articulando palavras como se executasse uma sinfonia do outro mundo.

— Que me queres?

— Venho em teu auxílio.

— Para quê?

O anjo pôs as mãos no peito de Cecília e respondeu:

— Para salvar-te.

— Ah!

— Sou o anjo das donzelas, continuou a visão, isto é, o anjo que protege as mulheres que atravessam a vida sem amar, sem depor no altar dos amores uma só gota do óleo celeste com que se venera o Deus menino.

— Sim?

— É verdade. Queres que eu te proteja? Que te imprima na fronte o sinal fatídico ante o qual recuarão todas as tentativas, curvar-se-ão todos os respeitos?

— Quero.

— Queres que com um bafejo meu te fique eternamente gravado o emblema da eterna virgindade?

— Quero.

— Queres que eu te garanta em vida as palmas verdes e viçosas que cabem às que podem atravessar o lodo da vida sem salpicar o vestido branco de pureza que receberam do berço?

— Quero. —

Prometes que nunca, nunca, nunca te arrependerás deste pacto, e que, quaisquer que sejam as contingências da vida, abençoarás a tua solidão?

— Quero.

— Pois bem! Estás livre, donzela, estás inteiramente livre das paixões. Podes entrar agora, como Daniel, entre os leões ferozes; nada te fará mal. Vê bem; é a felicidade, é o descanso. Gozarás ainda na mais remota velhice de uma isenção que será a tua paz na terra e a tua paz no céu!

E dizendo isto a fantástica criatura desfolhou algumas rosas sobre o seio de Cecília. Depois tirou do dedo um anel e introduziu no dedo da moça, que não opunha a nenhum destes atos, nem resistência nem admiração, antes sorria com um sorriso de angelical suavidade como se naquele momento entrevisse as glórias perenes que o anjo lhe prometia.

— Este anel, disse o anjo, é o anel de nossa aliança; doravante és minha esposa ante a eternidade. Deste amor não te resultarão nem tormentos nem catástrofes. Conserva este anel a despeito de tudo. No dia em que o perderes, estás perdida.

E dizendo estas palavras a visão desapareceu.

A alcova ficou cheia de uma luz mágica e de um perfume que parecia mesmo hálito de anjos.

No dia seguinte Cecília acordou com o anel no dedo e a consciência do que se passara na véspera. Nesse dia levantou-se da cama mais alegre que nunca. Tinha o coração leve e o espírito desassombrado. Tocara enfim o alvo que procurara: a indiferença para os amores, a certeza de não estar exposta às catástrofes do coração… Esta mudança tornou-se cada dia mais pronunciada, e de modo tal que as amigas não deixaram de reparar.

— Que tens tu? dizia uma. És outra inteiramente. Aqui anda namoro!

— Qual namoro!

— Ora, de certo! acrescentava outra.

— Namoro? perguntava Cecília. Isso é bom para as… infelizes. Não para mim. Não amo…

— Amas!

— Nem amarei.

— Vaidosa!…

— Feliz é que deves dizer. Não amo, é verdade. Mas que felicidade não me resulta disto?… Posso afrontar tudo; estou armada de broquel e cota de armas…

— Sim?

E as amigas desataram a rir, apontando para Cecília e jurando que ela se havia de arrepender de dizer palavras tais.

Mas passavam os dias e nada fazia notar que Cecília tivesse pago o pecado que cometera na opinião das amigas. Cada dia trazia um pretendente novo. O pretendente fazia corte, gastava tudo quanto sabia para cativar a menina, mas afinal desistia da empresa com a convicção de que nada podia fazer.

— Mas não se lhe conhece preferido? perguntavam uns aos outros.

— Nenhum.

— Que milagre é este?

— Qual milagre! Não lhe chegou a vez… Ainda não enflorou aquele coração. Quando chegar a época da florescência há de fazer o que as mais fazem, e escolher entre tantos pretendentes um marido.

E com isto se consolavam os taboqueados.

O que é certo é que corriam os dias, os meses, os anos, sem que nada mudasse a situação de Cecília. Era a mesma mulher fria e indiferente. Quando completou vinte anos tinha adquirido fama; era corrente em todas as famílias, em todos os salões, que Cecília nascera sem coração, e a favor desta fama faziam-se apostas, levantavam-se coragens; a moça tornou-se a
fg(820,’Cartago ‘)
Cartago das salas. Os romanos de bigode retorcido e cabelo frisado juravam sucessivamente vencer a indiferença púnica. Trabalho vão! Do agasalho cordial ao amor ninguém chegava nunca, nem por suspeita. Cecília era tão indiferente que nem dava lugar à ilusão.

Entre os pretendentes um apareceu que começou por cativar os pais de Cecília. Era um doutor formado em matemáticas, metódico como um compêndio, positivo como um axioma, frio como um cálculo. Os pais viram logo no novo pretendente o modelo, o padrão, a fênix dos maridos. E começaram por fazer em presença da filha os elogios do rapaz. Cecília acompanhou-os nesses elogios, e deu alguma esperança aos pais. O próprio pretendente soube do conceito em que o tinha a moça e criou esperanças.

E, conforme a educação do espírito, tratou de regularizar a corte que fazia a Cecília, como se se tratasse de descobrir uma verdade matemática. Mas, se a expressão dos outros pretendentes não impressionou a moça, muito menos a impressionava a frieza metódica daquele. Dentro de pouco tempo a moça negou-lhe até aquilo que concedia aos outros: a benevolência e a cordialidade.

O pretendente desistiu da causa e voltou aos cálculos e aos livros.

Como este, todos os outros pretendentes iam passando, como soldados em revista, sem que o coração inflexível da moça pendesse para nenhum deles.

Então, quando todos viram que os esforços eram baldados, começou-se a suspeitar que o coração da moça estivesse empenhado a um primo que exatamente na noite da visão de Cecília embarcara para seguir até Santos e daí tomar caminho para a província de Goiás. Esta suspeita desvaneceu-se com os anos; nem o primo voltou, nem a moça mostrou-se sentida com a ausência dele. Esta conjectura com que os pretendentes queriam salvar a honra própria perdeu o valor, e os iludidos tiveram de contentar-se com este dilema: ou não tinham sabido lutar, ou a moça era uma natureza de gelo.

Todos aceitaram a segunda hipótese.

Mas que se passava nessa natureza de gelo? Cecília via a felicidade das amigas, era confidente de todas, aconselhava-as ao sentido de uma prudente reserva, mas nem procurava nem aceitava os ciúmes que lhe andavam à mão. Todavia mais de uma vez, à noite, no fundo da alcova, a moça sentia-se só. O coração solitário parece que se não acostumara de todo ao isolamento a que o votara a dona.

A imaginação, para fugir às pinturas indiscretas de um sentimento a que a moça fugia, corria às soltas no campo das criações fantásticas e desenhava com vivas cores essa felicidade que a visão lhe prometera. Cecília comparava o que perdera e o que ia ganhar, e dava a palma do gozo futuro em compensação do presente. Mas nesses rasgos de imaginação o coração palpitava-lhe com força, e mais de uma vez a moça dava acordo de si procurando com uma das mãos arrancar o anel da aliança com a visão.

Nesses momentos recuava, entrava em si e chamava no interior a visão daquela noite dos quinze anos. Mas o desejo era baldado; a visão não aparecia, e Cecília ia procurar no leito solitário a calma que não podia encontrar nas vigílias laboriosas.

Muitas vezes a aurora veio encontrá-la à janela, enlevada nas suas imaginações, sentindo um vago desejo de conversar com a natureza, embriagar-se no silêncio da noite.

Em alguns passeios que fez aos subúrbios da cidade deixava-se impressionar por tudo o que a vista lhe oferecia de novo, água ou montanha, areia ou ervaçal, parecendo que a vista se lhe comprazia nisso e esquecendo-se muitas vezes de si e dos outros.

Ela sentia um vácuo moral, uma solidão interior, e procurava na atividade e na variedade da natureza alguns elementos de vida para si. Mas a que atribuía ela essa ânsia de viver, esse desejo de ir buscar fora aquilo que lhe faltava? Ao princípio não reparou no que fazia; fazia involuntariamente, sem determinação nem conhecimento da situação.

Mas, como se prolongasse a situação, ela foi pouco a pouco descobrindo o estado do coração e do espírito. Tremeu ao princípio, mas em breve se tranqüilizou; a idéia da aliança com a visão pesava-lhe no espírito, e as promessas feitas por ela de uma bem-aventurança sem igual desenhavam na fantasia de Cecília um quadro vivo e esplêndido. Isto consolava a moça, e, sempre escrava dos juramentos, ela fazia honra sua em ficar pura do coração para subir à morada das donzelas libertadas do amor.

Demais, ainda que o quisesse, parecia-lhe impossível sacudir a cadeia a que involuntariamente se prendera.

E os anos corriam.

Aos vinte e cinco inspirou uma paixão violenta a um jovem poeta. Foi uma dessas paixões como só os poetas sabem sentir. Este do meu conto depôs aos pés da bela insensível a vida, o futuro, a vontade. Regou com lágrimas os pés de Cecília e pediu-lhe como uma esmola uma centelha que fosse do amor que parecia ter recebido do céu. Tudo foi inútil, tudo foi vão. Cecília nada lhe deu, nem amor nem benevolência. Amor não tinha; benevolência podia ter, mas o poeta perdera o direito a ela desde que declarou a extensão do seu sacrifício. Isto deu a Cecília a consciência da sua superioridade, e com essa consciência certa dose de vaidade que lhe vendava os olhos e o coração.

Se lhe aparecera o anjo para tirar-lhe do coração o germe do amor, não lhe apareceu nenhum que lhe tirasse o pouco de vaidade.

O poeta deixou Cecília e foi para casa. Daí seguiu para uma praia, subiu a uma pequena eminência e atirou-se ao mar. Dai a três dias encontrou-se-lhe o cadáver, e os jornais deram do fato uma notícia lacrimosa. Entretanto encontrou-se entre os papéis do poeta a seguinte carta:

*** A Cecília D…

Morro por ti. É ainda uma felicidade que eu procuro em falta da outra que eu procurei, implorei e não alcancei.

Não me quiseste amar; não sei se o teu coração estaria cativo, mas dizem que não. Dizem que és insensível e indiferente.

Não quis crê-lo e fui por mim próprio averiguá-lo. Coitado de mim! o que vi bastou para dar-me a certeza de que não estava reservado para mim semelhante fortuna.

Não te pergunto que curiosidade te levou a voltares a cabeça e transformares-te, como a mulher de Lot, em estátua insensível e fria. Se alguma coisa há nisto que eu não compreendo, não quero sabê-lo agora que deixo o fardo da vida, e vou, por caminho escuro, procurar o termo feliz da minha viagem.

Deus te abençoe e te faça feliz. Não te desejo mal. Se te fujo e se fugi ao mundo é por fraqueza, não é por ódio; ver-te, sem ser amado, é morrer todos os dias. Morro uma só vez e rapidamente.

Adeus…

Esta carta causou a Cecília muita impressão. Chorou até. Mas era piedade e não amor. A maior consolação que ela mesma deu a si foi o pacto secreto e misterioso. É culpa minha? perguntava ela. E respondendo negativamente a si mesma achava nisso a legitimidade da sua indiferença.

Todavia, esta ocorrência trouxe-lhe ao espírito uma reflexão.

O anjo prometera-lhe, em troca da isenção para o amor, uma tranqüilidade durante a vida que só poderia ser excedida pela paz eterna da bem-aventurança.

Ora, que encontrava ela? O vácuo moral, as impressões desagradáveis, uma sombra de remorso, eis os lucros que tivera.

Os que foram fracos como o poeta recorreram aos meios extremos ou deixaram-se dominar pela dor. Os menos fracos ou menos sinceros no amor alimentaram contra Cecília um despeito que deu em resultado levantar-se uma opinião ofensiva à moça.

Mais de um procurava na sombra o motivo da indiferença de Cecília. Era a segunda vez que se atiravam a essas investigações. Mas o resultado delas era sempre nulo, visto que a realidade era que Cecília não amava ninguém.

E os anos corriam…

Cecília chegou aos trinta e três anos. Já não era a idade de Julieta, mas era uma idade ainda poética; poética neste sentido — que a mulher, em chegando a ela, tendo já perdido as ilusões dos primeiros tempos, adquire outras mais sólidas, fundadas na observação.

Para a mulher dessa idade o amor já não é uma aspiração do desconhecido, uma tendência mal exprimida; é uma paixão vigorosa, um sentimento mais eloqüente; ela já não procura a esmo um coração que responda ao seu; escolhe entre os que encontra um que possa compreendê-la, capaz de amar como ela, próprio para fazer essa doce viagem às regiões divinas do amor verdadeiro, exclusivo, sincero, absoluto.

Nessa idade era ainda bela. E pretendida. Mas a beleza continuou a ser um tesouro que a indiferença avarenta guardava para os vermes da terra.

Um dia, longe dos primeiros, muito longe, a primeira ruga desenhou-se no rosto de Cecília e alvejou um primeiro cabelo. Mais tarde, segunda ruga, segundo cabelo, e outras e outros, até que a velhice de Cecília declarou-se completa.

Mas há velhice e velhice. Há velhice feia e velhice bonita. Cecília era da segunda espécie, porque através dos sinais evidentes que o tempo deixara nela, sentia-se que fora uma criatura formosa, e, embora de outra natureza, Cecília inspirava ainda a ternura, o entusiasmo, o respeito.

Os fios de prata que lhe serviam de cabelos emolduravam-lhe o rosto rugado, mas ainda suave. A mão, que tão linda era outrora, não tinha a magreza repugnante, mas era ainda bela e digna de uma princesa… velha.

Mas o coração? Esse atravessara do mesmo modo os tempos e os sucessos sem nada deixar de si. A isenção foi sempre completa. Lutava embora contra não sei que repugnância do vácuo, não sei que horror da solidão, mas nessa luta a vontade ou a fatalidade vencia sempre, triunfava de tudo, e Cecília pôde chegar à adiantada idade em que a achamos sem nada perder.

O anel, o fatídico anel, foi o talismã que nunca a abandonou. A favor desse talismã, que era a assinatura do contrato celebrado com o anjo das donzelas, ela pôde ver de perto o sol sem se queimar.

Tinham-lhe morrido os pais. Cecília vivia em casa de uma irmã viúva. Vivia dos bens que recebera em herança.

Que fazia agora? Os pretendentes desertaram, os outros envelheceram também, mas iam ainda por lá alguns deles. Não para reqüestá-la de certo, mas para passar as horas ou em conversa grave e pausada sobre coisas sérias, ou à mesa de algum jogo inocente e próprio de velhos.

Não poucas vezes era assunto de conversação geral a habilidade com que Cecília conseguira atravessar os anos da primeira e da segunda mocidade sem empenhar o coração em nenhum laço de amor. Cecília respondia a todos que tivera um segredo poderoso do qual não podia fazer comunicação alguma.

E nestas ocasiões olhava amorosamente para o anel que trazia no dedo ornado de uma bela e grande esmeralda.

Mas ninguém reparava nisto.

Cecília gastava horas e horas da noite em evocar a visão dos quinze anos. Quisera achar conforto e confirmação às suas crenças, quisera ver e ouvir ainda a figura mágica e a voz celeste do anjo das donzelas.

Parecia-lhe, sobretudo, que o longo sacríficio que consumara merecia, antes da realização, uma repetição das promessas anteriores.

Entre os que freqüentavam a casa de Cecília alguns velhos havia dos que, na mocidade, tinham feito roda a Cecília e tomado mais ou menos seriamente as expressões de cordialidade da moça.

Assim que, agora que se encontravam nas últimas estações da vida, mais de uma vez a conversa tinha por objeto a isenção de Cecília e as infelicidades dos adoradores.

Cada um referia os seus episódios mais curiosos, as dores que sentira, as decepções que sofrera, as esperanças que Cecília esfolhara com impassibilidade cruel.

Cecília ria ouvindo essas confissões, e acompanhava os seus adoradores de outrora no terreno das facécias que as revelações mais ou menos inspiravam.

— Ah! dizia um, eu é que sofri como poucos.

— Sim? perguntava Cecília.

— É verdade.

— Conte lá.

— Olhe, lembra-se daquela partida em casa do Avelar?

— Foi há tanto tempo!

— Pois eu me lembro perfeitamente.

— Que houve?

— Houve isto.

Todos se prepararam para ouvir a narração prometida.

— Houve isto, continuou o ex-adorador. Estávamos no baile. Eu, nesse tempo, era um verdadeiro pintalegrete. Envergava a melhor casaca, esticava a melhor calça, derramava os melhores cheiros. Mais de uma dama suspirava em segredo por mim, e às vezes nem mesmo em segredo…

— Ah!

— É verdade. Mas qual é a lei geral da humanidade? É não aceitar aquilo que se lhe dá, para ir buscar aquilo que não poderá obter. Foi o que fiz.

Le bonheur, c’est la boule
Que cet enfant poursuit tout le temps qu’elle roule.
Et que, dès qu’ele arrête, il repousse du pied.
fg(692,’*')
*

— Bravo!

— Vamos à história!

— Estávamos no baile. Já duas senhoras tinham-se retirado para o camarim a fim de evitar algum desmaio. Por quê? Que fazia eu? Eu derramava aos pés de D. Cecília uma torrente de madrigais, dizia-lhe do melhor modo possível que a beleza dela tinha-me inspirado um amor profundo e decisivo. Ela não prestava aos meus discursos senão uma atenção indiferente. Isto desesperava. Insistia, repetia, pedia-lhe quase o coração. Ela nada. Enfim ofereci-lhe o braço. Percorremos algumas salas. D. Cecília estava divina de graça, de beleza, e etc… de indiferença. Se fosse a indiferença somente bem estava, mas houve mais…

— Houve mais?

— Houve. Houve desengano. Eu disse-lhe que a amava perdidamente; ela respondeu-me positivamente que não me podia amar. Quase caí. Não lhe disse mais nada e voltamos para a sala.

— Não me lembro disso, observou Cecília.

— Lembro-me eu que fui a vítima. O algoz…

— À ordem! à ordem! reclamaram os ouvintes.

O narrador continuou:

— Deixei D. Cecília na sala e saí. Fui para o jardim. Desesperado, cuidei que o ar e a solidão me aplacassem o ânimo. Vi através da rama de uns arbustos um ponto de luz. Era um charuto ao que me parecia, e com o charuto um homem. A noite estava escuríssima. Caminhei para o lugar em que me parecia estar o homem e o charuto. Pedi fogo e vi que o charuto me entrava nas mãos. Acendi um charuto e agradeci. A minha voz foi conhecida pelo meu interlocutor e eu próprio reconheci na voz que me falava um rapaz que eu conhecera aos salões.

— Abrevie a história!

— Apoiado!

— É simples. Contei ao meu interlocutor os motivos da minha presença, e estava calmo, esperando algumas palavras de consolação, quando me senti agarrado. Procurei defender-me e lutamos durante alguns minutos, ao som de uma polca que se executava no interior da casa. Todos compreendem o caso. O meu adversário era pretendente ao coração de D. Cecília; estava, como eu, desconsolado. Lutamos, como disse. Nunca mais nos falamos.

— Nunca mais?

— Nunca mais.

— Não me lembro de nada, nem me constou nada neste sentido, disse Cecília.

— Eu nunca disse nada a ninguém.

Fora escrever dois volumes repetir os episódios trágicos, ou cômicos, ou patéticos, que os ex-adoradores de Cecília traziam para a conversação.

Em uma dessas práticas íntimas, singelas, trouxe um criado uma carta para Cecília. Era de Tibúrcio.

Quem era Tibúrcio? Era o primo de Cecília que partira da corte na noite em que Cecília fizera o contrato misterioso para independência do coração.

Tibúcio partira moço e voltou velho. Nunca dera sinal de si. Não se sabia onde andava nem que fazia.

Tibúrcio escrevia de S. Paulo. Dizia que dentro de oito dias estaria na corte. E daí a oito dias chegou.

A carta dizia:

Minha prima. — Dentro de oito dias lá estarei. Vai aparecer-lhe um velho. Há que tempo de lá saí!

Andei seca e meca. Ganhei, perdi, tornei a ganhar, e a experiência me serviu, porque o que ganhei conservo agora e não tenho idéia, nem ânimo de perdê-lo outra vez.

Que é feito de nossa família? Eu de nada sei. Não procurei ninguém, não escrevi; acho que fizeram bem em me não escreverem. Com ingrato, ingrato e meio. Mas eu hei de provar que não fui ingrato.

Adeus. Esta lhe há de ser entregue por C…, meu amigo, que parte para essa corte. Adeus. — Tibúrcio.

Tibúrcio acompanhou a carta com intervalo de alguns dias. Era um velho bonito, folgazão, opulento de carnes e de dinheiro.

Nem Tibúrcio reconhecia Cecília, nem Cecília reconheceu Tibúrcio. Tão mudados estavam!

Vieram as longas narrativas do que se houvera passado durante o longo espaço de tempo que se não viram.

É necessário dizer que Tibúrcio, quando partira da corte, amava Cecília, sem que para amá-la se fundasse em nenhum sentimento recíproco.

Cecília foi ao princípio indiferente… por indiferença. Mais tarde é que veio o pacto angélico.

Tibúrcio ouviu, com grande admiração, da boca de Cecília a notícia de que ela nunca se houvera casado.

E de sua parte declarou que também se conservara solteiro, adiantando logo a razão disso, que era não poder levar família para as trabalhosas empresas a que se entregava.

Mas a respeito de Cecília admirou-se muito. Não a deixara formosa e reqüestada? Não via ainda que essa beleza tarde desapareceu?

— Não quis, respondia Cecília.

— Mas por quê?…

— Não sei… não quis.

E, como sempre, Cecília olhava amorosamente para o anel. Os olhos de Tibúrcio acompanharam os de Cecília e pousaram na esmeralda que ela trazia no dedo.

— Ah! disse ele.

E a conversa passou a outros assuntos.

Insistiram todos em que Tibúrcio referisse as suas viagens, as suas aventuras, os seus perigos, as suas fortunas.

— Fora preciso um ano, disse Tibúrcio.

Com efeito, Tibúrcio tinha vivido uma vida acidentada. Lutas, perigos, sustos, fortunas, alternativas de todo o gênero, tudo matizava o fundo do quadro da existência de Tibúrcio.

Tibúrcio adquirira parte de sua fortuna em algumas explorações de minas de ouro e de brilhantes.

Durante os dias que se seguiram ao da chegada dele em casa de Cecília, a família, os restos da família, e os convivas habituais, divertiram-se muito ouvindo as narrações de Tibúrcio sobre os acidentes das explorações mineiras.

Quando se esgotou esse capítulo, Tibúrcio referiu que uma vez fora agarrado pelos bugres perto do rio Araguaia. Quando caiu nas mãos daqueles bárbaros perdeu até a última gota de sangue. Viu a morte diante dos olhos. Já os bugres se preparavam para almoçar aquele bife, quando uma partida de soldados que andava à caça de um criminoso descobriu o fato e chegou a tempo de salvar Tibúrcio dos estômagos indígenas.

Outros perigos correra o primo de Cecília, como o de naufragar em torrentes de rios, encontrar-se com onças, e outros deste gênero.

O auditório habitual de Tibúrcio divertia-se muito com estas narrações, e ele por sua parte sabia referir os tais episódios dando-lhes as cores próprias de comover e interessar.

Tibúrcio resolvera ir morar com as duas parentas, e ali se instalou imediatamente.

Todas as noites havia uma reunião de amigos para tomar chá, conversar e jogar.

Uma noite de chuva, em mês de junho, debalde se esperaram os convivas. A chuva e o frio não consentiram que os respeitáveis anciões
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[2] deixassem os conchegos do lar, nem mesmo com a sedução das boas horas que se passava em casa de Cecília.

Foram, pois, os três parentes obrigados a se privarem naquela noite da companhia dos amigos.

Tomaram chá cedo e estavam fazendo horas à mesa até que viesse a hora habitual de se recolherem.

Travou-se a seguinte conversação:

— Ora, prima, disse Tibúrcio, ainda não lhe contei os tormentos que sofri relativamente ao coração…

— Ah!

— É verdade. Lembrei-me muito de você.

— Deveras?

— É verdade. Não se lembra que eu mais de uma vez lhe confessei o amor que alimentava?

— Lembro-me, sim.

— Pois saí da corte com as mais dolorosas impressões. Via que ia para longe e perdia de vista a mulher que eu ainda nem conhecia de coração. Padeci muito.

— Falar nisso agora não sei que me parece.

— Parece o que é, a verdade. Quis matar-me…

— Que tolice!

— Foi o que eu pensei…

— Morria e eu ficava.

— Mas o que me agrada é ver que se eu não esqueci, também você não esqueceu.

— Não, de certo.

— Mas, de certo modo?

— Que modo?

— Gentes! disse a prima viúva. Vocês parecem namorados!

— Mas de que modo? como apaixonada?

— Sim.

— Que loucura!

— Pelo menos tenho uma prova.

— Vamos ver a prova, disse a viúva.

— A prova não está comigo.

— Está comigo? perguntou Cecília.

— É verdade.

— Onde?

— Aí, no dedo.

Cecília olhou para o anel.

— No dedo! disse ela sem compreender a que podia o primo aludir.

— Esse anel, disse o primo.

— Este anel? Que tem este anel?

— Ora, afinal, disse a prima viúva, vamos saber o que significa este misterioso anel.

Cecília estava espantada sem compreender.

Tibúrcio continuou:

— Este anel, sim. É meu. Ou por outra, é seu hoje, mas foi meu, porque o encomendei.

— Mas explique-se.

— Nas vésperas de partir da corte quis deixar-lhe uma prova de que o meu amor era verdadeiro e seria eterno. Encomendei este anel, que o ourives prontificou com o maior cuidado e zelo. Tinha dois meios de dar-lho: ou introduzir-lho no dedo, francamente, com a declaração de que era uma lembrança minha que deixara, ou depositá-lo no seu toucador para que, quando eu já estivesse fora, aquela lembrança a surpreendesse.

— É romanesco, disse a viúva.

Cecília nada disse. Tinha os olhos pregados em Tibúrcio e procurava arrancar-lhe as palavras da boca.

Tibúrcio prosseguiu:

— Preferi o segundo meio por me parecer, como diz a prima, romanesco. Mas, ao executá-lo, ocorreu-me um terceiro meio. Era o de colocar o anel no seu dedo na hora em que dormisse, de modo que a surpresa fosse ainda maior.

— Ah! e…

Esta exclamação e esta conjunção partiram da prima viúva. Cecília tão absorta estava que nada podia dizer.

— Descansem, disse Tibúrcio, eu fiz as coisas honestamente. Peitei a mucama para que alta noite, na ocasião em que a prima dormisse depois da costumada leitura… Ah! você lia muito romance!

— Adiante!

— Para que alta noite se aproveitasse do sono em que você estivesse e lhe pusesse o anel. Assim foi. Vejo agora que conservou o anel. Mas, diga-me, a Teresa nunca lhe disse nada disto?

— Não, disse Cecília distraidamente.

— Pois foi assim. E se quer mais uma prova tire o anel… Nunca o tirou?

— Nunca.

— Pois tire o anel e veja se não estão gravadas pela parte interior as iniciais do meu nome.

Cecília hesitou entre a curiosidade de averiguar a asseveração de Tibúrcio e um resto de crença que tinha nas palavras da visão.

— Tire o anel.

— Mas…

— Tire! Que receio é esse?

— Esperem, não tiro por uma razão. Eu não creio no que diz o primo Tibúrcio.

— Por quê?

— Não creio, mas creio em outra coisa.

— Essa agora!

— É verdade.

E Cecília passou a referir aos dois parentes todas as circunstâncias da visão, o diálogo que tivera com ela, a fé em que lhe ficaram as promessas do anjo das donzelas.

— Tal foi, acrescentou Cecília, a razão por que me não casei. Tinha fé nisto. Quanto a tirar o anel, disse-me a visão que nunca o fizesse.

Tibúrcio deu uma gargalhada.

— Ora, prima, disse ele, pois você quer contestar uma verdade com uma superstição? Ainda acredita em sonhos!

— Como, sonhos?

— É evidente. Isso da visão não passou de um sonho. Coincidiu o sonho com o fato do anel. Mas você quando acordou no dia seguinte achou-se com um anel no dedo, não devia fazer outra coisa mais do que averiguar a razão do fenômeno, e não dar crédito a uma coisa toda de imaginação.

Cecília abanou a cabeça.

— Pois não crê? Tire o anel.

Cecília hesitava. Mas Tibúrcio usou da arma do ridículo, no que foi acompanhado pela prima viúva de modo que Cecília, com alguma relutância, pálida e trêmula, arrancou o anel do dedo.

O anel tinha na parte interna gravadas estas iniciais: T. B.

Machado de Assis
Publicado originalmente em Jornal das Famílias (1864)

Obs: Este conto começa já com a idéia do Narrador onisciente intruso, onde dialoga com o leitor, e coloca claramente sua opinião. Ex: Cuidado, caro leitor, vamos entrar na alcova de uma donzela.

Proust



"Não teria acaso pensado que o Mal fosse um estado tão raro, tão extraordinário, tão isolante e para onde era tão grato emigrar, se soubesse discernir em si mesma, como em todos os outros, essa indiferença pelos sofrimentos que nós mesmos causamos e que, por mais diversos nomes que lhes dêem, é a forma mais terrível e permanente da crueldade."

(Proust, No Caminho de Swann)




21 Desescolarização.

Resumo de Fundamentos da Educação, ref. Ivan Illich, Sociedade sem escolas p. 153

1.Crítica à escola

Com a estrutura sistemática, e as normas a serem cumpridas, a escola se transforma hoje, em uma "prisão", um meio de manter escravos, que são todos aqueles que têm direito à um bom futuro. Algo irônico isso, mas não passa de realidade. A sociedade mantêm uma visão da escola como o único lugar onde se pode aprender, educar, e tornar-se humano. Essa ideologia faz do indivíduo que não tem condições de frequentá-la, inferior.
A escola refere-se principalmente ás crianças, pois, é na infância que se impõem mais facilmente regras a serem cumpridas e assim muito mais fácil de mantê-las em seu desenvolver, mesmo que a escola se refira á esse modo militarizado como um meio de aprender a crescer. Illich afirma que não é na escola que as crianças aprendem, e sim que a maior parte do aprendizado ocorre fora dela.
A escola é vista com "bons olhos" mesmo sem precisar esconder a sua hierarquia. Os alunos estão na escola "para" conhecer o mundo, enquanto os afasta dele, fazendo-os cumprir horários, e desenvolver respeito e por um lado, medo dos professores.

"Nossa sociedade produtivista e burocratizada reduz o indivíduo á consumidor passivo, Illich acusa a escola de ser cúmplice desse estado de coisas, pois ajuda a alimentar o mito do progresso, da competência e do consumo".

Jooe


Cada dia mais quero estar com você.

Dificil evitar.

Estarei aqui te esperando. Pra sempre.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Sorry



Momentos ruins me fazem escrever coisas sem sentido,
sinto coisas, penso coisas e escrevo outras totalmente diferentes,
não que tudo seja uma farsa,
já comentei com você que o pior de tudo é o silêncio, eu escrevo, deleto, penso que possa ter lido.
Nenhuma resposta.
O que quer que eu pense? A distância não nos ajuda neste caso, no mínimo teria cometido a
proeza de ir te ver e não ter que me esclarecer através de dígitos.
O que eu sinto por você, todo dia muda, e percebo que cada dia mais, só quero você.
Não me importa se pra isso tenha que te esperar, ou fazer mil loucuras,
como já diz Everlast, "enquanto você não achar alguém melhor, te amarei até a morte".

Nem o fim, nem insegurança, bom.. claro, pelo menos da minha parte, não faço a mínima idéia de qual possa vir a ser sua reação.


Muito anciosa.